fotografar,
desenhar, gravar: dilacerar
a
pretensão da fotografia, já se sabe, é a suspensão do tempo ou, o que dá no
mesmo, a condenação à morte de uma paisagem, do rosto de uma pessoa, de uma
cena, coisas e acontecimentos banais ou singulares, não importa, algo que a
câmera, simples ou sofisticada mas sempre uma câmera mortuária, fixa em seu
interior, subtraindo o movimento que obstinadamente leva de roldão tudo o que
há para os confins dos dias e noites;
e
não pode haver beleza no movimento, já que essa, senão em ao menos no princípio,
confinaria com a estabilidade, com a rigidez própria a arquitetura, aos
retratos realizados em telas e nas primeira fotografias, aquelas que demandavam
aos modelos horas intermináveis em poses paralisadas; o problema é que
necessitamos de beleza e, na medida em que somos o que olhamos, conservamos
algo da crença milenar, relembrada por Brodsky em seu livro sobre Veneza, que
aconselhava a mulher grávida a olhar para belos objetos caso desejasse beleza
ao seu filho;
como
tudo que há no mundo se movimenta, criamos a arte como recurso à necessidade de
instância, ao coágulo do tempo e, consequentemente, à calma; arquitetura,
pintura, escultura podem ser formas de produção de imagens fixas; a fotografia
também, muito embora, diversamente das outras três, pode demandar nada mais do
que um simples instantâneo para a captura de algo que lhe é
exterior; sendo assim haveria possibilidade da beleza habitar um fenômeno
de superfície como esse? para servir de morada à beleza não seria necessário
mais tempo de produção sob risco de uma queda no vácuo? por outro lado, quem
disse que a beleza seja, afinal, necessária?
as
fotos / desenhos / gravuras de Rosângela Dorazio comentam esses impasses; sobrepassando a condição das fotos como
espelho de imagens mortas, um plano de inflexão do mundo que atua como depósito
de instantes, a artista risca parcialmente cada uma delas, ataca com uma ponta
seca, um lápis que prefere sequer trocar grafite com a superfície, os renques
de árvores e de prédios que margeiam lagos, parques e veredas; vai dilacerando
o papel que serve de suporte aos arranjos orgânicos e geométricos,
escarificando-os a maneira de um gravador que abre sulcos numa chapa de metal
ou madeira através de estiletes e burís;
a
artista destrói as imagens quase sempre deixando um rastro delas nos reflexos silenciosos de lagos e
poças; as imagens, agora flutuando em superficies líquidas, carregam consigo o
eco de imagens que não mais existem, o que serve como demonstração da impossibilidade
de reter o visível, de que toda fotografia fundada na lógica do documento e do
registro acena uma ilusão tão concreta quanto a nitidez das imagens estampadas.
não
há nada lá agora, diz-nos Rosângela sobre suas fotografias, o que também vale
para as fotografias em geral; havia e, no seu caso, a prova está em sombras e
reflexos; e porque quer que haja, porque não se resigna a essa impassividade
tão bela quanto ôca, a artista risca com violência as imagens, dilacera-as de
modo a pretender vivificá-las, mesmo que o seu miolo seja essa matéria branca,
inexpressiva, desimportante, agora encrespado, excitado pelos gestos, a beleza
se desfaz, descongelada pela energia que volta a fluir.
Agnaldo
Farias
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